Editorial
As crescentes crises forçam novas maneiras de pensar a pesquisa artística e ativam modos de engajamentos com as articulações materiais no contexto da publicação. O grau de conflito experienciado diariamente por muitos, de tão pronunciado que é, exige reconhecimento por parte do corpo editorial, o que afeta também nossa relação quanto às submissões que recebemos. Ultimamente, notamos um movimento das periferias ao centro num espectro alargado de apresentações de conflitos que incluem ativismo, pragmatismo, ideologia e sofrimento, como também ignorância e relutância. Este espectro é complexo, e eu percebo minha própria tendência de generalizar e julgar, até mesmo ao listar estes eventos.
Mais importante do que estas descrições, porém, seja o fato de que mais e mais nos perguntamos sobre o ponto crítico referente a qualquer submissão, onde se localizam os conflitos, independentemente de esses serem ou não citados na submissão. Esse entendimento aponta para um reconhecimento de condições mutantes, que parecem tão fraturadas que qualquer coisa, de uma maneira ou de outra, soará como preconceituosa, inclusive também nossa orientação editorial, que acaba por acirrar posicionamentos conflitantes que extrapolam o escopo do que define a qualidade de uma submissão. Para dar um exemplo, valorizamos pesquisadores engajados em práticas históricas. Entretanto essas práticas são interrelacionadas com formações identitárias de aspectos étnicos, culturais, nacionais, sociais e econômicos. Como podemos nos envolver do ponto de vista editorial com uma prática de tal complexidade? Seremos capazes, mesmo com a ajuda do conhecimento e engajamento dos pareceristas, de nos desembaraçarmos suficientemente dessas questões e chegarmos ao âmago que não esteja também em conflito com nosso enquadramento epistêmico?
O ponto central é que se essas crises existem e precisam ser reconhecidas, não há posição neutra da qual partir. Mesmo que apostemos que o trabalho exposicional seja capaz de estabelecer relações duradouras através de diferentes posicionamentos materiais, a fragmentação cada vez maior de sua origem é irreparável. Nesse entendimento, conflito não é uma disputa a ser travada num terreno compartilhado para determinar o direito, a verdade ou uma posição que prevalesça, mas é um engajamento sem base definida que pode não ser estabelecida. Temos de nos perguntar se estabelecer crises e resolver conflitos é o propósito de uma exposição.
Esta questão toca no cerne do que um periódico acadêmico revisado por pareceristas como o JAR é, e pode ser. Enquanto a pesquisa artística parece ter evitado o terrível processo de formação disciplinar, em que a disciplina separa nitidamente o que é aceito do que não é, o seu estatuto enquanto campo é muito menos contestado desde que esse permita atravessamentos inter/transdisciplinares que pareçam abertos o suficiente. Mesmo assim, o campo ainda sugere que haja um terreno em comum onde os pesquisadores possam se encontrar — nas páginas do JAR, por exemplo — mesmo que tal terreno não possa ser dado como certo, e requeira um contínuo reassentamento e reconstituição. Ao longo da história do JAR, isto tem sido verdadeiro, pois nos encontramos ativamente envolvidos na continua reconstituição do que venha a ser a pesquisa artística através da primazia da prática artística sob a mira do reconhecimento institucional, multimodal, e suas aproximações com a multimídia, e, posteriormente, dos desafios quanto a língua inglesa enquanto língua dominante, e seu associado sentido de centro cultural.
Entretanto, o foco crescente nas crises e conflitos hoje nos deixa também ver como algo fútil as várias tentativas de reconstituição e reconciliação usadas para maquiar diferenças radicais e existenciais. E se a pesquisa artística não tiver se consolidado como um campo e nós não tivermos sido, nem nunca seremos, uma comunidade? Se a realidade epistêmica de nosso mundo é cada vez mais conflitante e a crise se tornar a norma, poderemos ser chamados a nos desintegrar, mais do que nos integrar melhor, se assumirmos, e precisamos fazê-lo, que em pesquisa artística a concretude importa em todos os níveis. Olhando para trás, poderíamos dizer que em exposições multimodais as várias mídias, e traços da prática na sua melhor forma, não se integram numa proposição, ao contrário, se desintegram em conjuntos de mundos paralelos, que a obra é capaz de sustentar lado a lado, em vez de em uma ordem dada em que algumas dominam outras. De qualquer forma, se seguirmos a trajetória de nosso deslocamento linguístico, talvez não possamos ver uma unidade híbrida emergente, mas um espaço com uma multiplicidade crescente, no qual nada aparece sem projetar sua sombra no resto.
Como isto em princípio é para ser feito, é uma questão difícil. Eu sugeriria iniciar por separar as apresentações de conflitos, as que buscam resolução ou as que buscam domínio, das que exemplificam uma diferença radical sustentando relações intactas com situações de específicas materialidades ao lado de outras, sejam lá quais forem. Aqui não deveríamos nos preocupar primariamente com as situacões materiais originais inesperadas, uma vez que sejam parte ou parcela de nossos ricos e maravilhosos mundos; nosso foco, ao contrário, deve se basear nos conflitos que estão inscritos nelas próprias, e que são reconhecidos mas, na maior parte das vezes, ignorados. A questão a ser colocada a uma submissão poderia ser se esta é capaz de manter aberta a distinção entre diferença e conflito, sem permitir que este último domine através da presença ou da ausência. Poderíamos procurar diferenças não comprometidas pelos conflitos.
Esta abordagem abrangeria surpreendentemente um amplo espectro de submissões. Por exemplo, poderíamos dizer que muitas submissões recebidas provém do contexto da educação doutoral e, como tal, são comprometidas por específicas estratégias para evitar conflitos, através do modo de escrita acadêmica, e da estruturação dos argumentos ou da necessidade de discursividade. Este seria bem um dos casos, experienciados por muitos, no qual a resolução do conflito é tão intrínseca à situação, que dificilmente é externalizado. Também poderíamos dizer que as submissões em outras línguas que não o inglês, apesar de não declarado, enfrentam resistências. Ou quando o trabalho de tradução não deixa nenhum rastro, fazendo-nos crer ser possível mudar de contextos sem nenhum esforço. Isso chegou a uma tal presença na Internet que nunca sabemos se o texto que lemos se trata de uma tradução ou do original, ou se quem a realizou e a partir de qual posicionamento linguístico o texto foi composto.
Depois, temos também submissões que carregam em si mesmas um conflito diário tão intenso — em regiões que sofrem com a guerra e a injustiça, ou tensões raciais e étnicas — que são consumidas pelo conflito, compromentendo todo o resto virtualmente. Em todos estes casos, para melhor ou para pior, a voz da diferença parece ter sido silenciada.
Neste estágio, não posso dizer se temos agido suficientemente em quaisquer destas questões, mas sei que cada um de nós lembrará de momentos nos quais nós enquanto autores, pareceristas, leitores, e editores poderíamos ter feito melhor dando mais crédito para aquilo que está ao nosso alcance e colocando em perspectiva o conflito que também carregamos. No entanto, acredito que todos lembrarão dos momentos que pensamos ter enfrentado desafios e podemos ter dado e achado apoio para algo especificamente vivo — para algo que pode ter nascido do conflito, mas que demonstravelmente não foi consumido por ele. Será que isso é o que chamamos de arte?
Michael Schwab
editor chefe