Andersen, Christian Ulrik; Pold, Søren Bro. (2018). The Metainterface. The Art of Platforms, Cities, and Clouds. Cambridge, Massachusetts; London, England: MIT Press. <https://mitpress.mit.edu/books/metainterface>

 

O fenômeno cultural—da indústria da metainterface—da computação em nuvem nos obriga pensar as tecnologias através de uma abordagem crítica. O livro de Andersen e Pold discorre sobre o uso estético e político da cultura da nova tendência da nuvem através de um viés crítico trazendo referências seminais do campo das artes da Net e do Software. A nuvemcerne da metainterface—sob os conceitos de computação móvel, computação ubíqua e Internet das Coisas não é apenas um novo serviço na internet. O design de um futuro aberto, inteligente, participatório e em rede estaria vinculado à prometida disponibilização do espaço de interação e aplicativos, objetos inteligentes (smart objects) e computação móvel que se fundiriam infalivelmente ao ambiente. O conceito de metainterface possuiria três funções: conectar os celulares à infraestrutura das redes globais, em larga-escala; afetar a percepção do mundo em tempo real globalizado; e através das artes refletir sobre a indústria corporativa da metainterface quanto a construção de novas realidades e projetar designs alternativos de metainterface. Embora a materialidade textual das interfaces seja passível de ser exumada—pois as tecnologias midiáticas deixam rastros atrás de si—, a metainterface propiciaria um enevoamento das estruturas materiais da rede, tornando invisíveis as consequências materiais no ambiente aos indivíduos. À arte caberia desafiar o desaparecimento das interfaces, revelando a fissura produzida nas realidades por estas metainterfaces.

Christian Ulrik Andersen e Søren Bro Pold, professores da Universidade de Aarhus, Dinamarca, do departamento de Digital Design, da Escola de Comunicação e Cultura, são autores também do livro publicado pela Aarhus University Press em 2011, Interface Criticism. Aesthetics Beyond Buttons, que este livro atual dá continuidade à pesquisa. Respaldados na teoria da crítica literária e no design de interfaces, a acuidade reflexiva e de percepção é fruto da convivência com colegas membros do grupo de pesquisa do Center for Participatory IT de Aarhus,1 com os quais inúmeros projetos, eventos e textos foram realizados conjuntamente.2

O livro dividido em cinco capítulos, “Interface Criticism”, “The Metainterface Industry”, “The Urban Metainterface”, “The Cloud Interface” e “Interface Criticism by Design”, questiona a retenção de dados pelas plataformas online e impulsiona a formação de comunidades críticas no intuito de promover um futuro tecnológico menos distópico. Com um olhar na crítica literária e outro na teoria das interfaces, os autores detalham pormenorizadamente trabalhos incomuns no campo da arte. The Metainterface tem um apreço pela cultura popular da Net indo de encontro ao que Gilbert Seldes cunhou em 1920 como sendo “lively arts”. Fora da cultura erudita, “lively arts” corresponderia à prática de artistas não reconhecidos pelas instituições artísticas, sem treinamento formal das academias.

O uso de plataformas digitais e a normatização das tecnologias, que funde a cultura erudita à das redes e à do software anularia a anterior separação entre cultura erudita e “lively arts” considerada infrutífera. Exposições pioneiras como Cybernetic Serendipity do Institute of Contemporary Arts, em Londres 1968, Software do Jewish Museum, em Nova Iorque 1979 e Computers and Visual Research, em Zagreb 1968 teriam aproximado software e arte conceitual. Os termos Pós-Digital, Pós-Internet e Nova estética prenunciariam a cultura contemporânea.

A argumentação parte de proposições artísticas enquadradas como “lively arts” ou “not-just-art”: da instalação Fascinum, de 2001, e Artwar(e) uma página na internet, de 2010, que denuncia o capitalismo semântico, ambos trabalhos de Christofe Bruno; do objeto intitulado Inter_fight, de 2015, de César Escudero Andaluz, que falseia uma interação com a tela do celular disparando aleatoriamente informações; e da instalação em tempo real baseada na Net, CO2GLE de Joana Moll, que demonstra que a emissão de dióxido de carbono na atmosfera produzida pela visitação dos internautas à página da Google é comparável à emissão produzida pela aviação.

Na literatura eletrônica e nos jogos computacionais, a computação e o processador de texto, que utiliza algoritmos na complexa relação entre códigos e material textual, instigam uma textualidade com novas formas de texto e narrativas. Isto torna inaplicável a análise crítica da literatura convencional, pois as interações possíveis neste novo contexto, quando a navegação é crucial, diferem das propiciadas pelo livro impresso. Como apontado por Espen Aarseth em seu livro Cybertext: Perspectives on Ergodic Literature, de 1997, estas novas formas de texto encontram ressonância na tradição e história do grupo Oulipo (Ouvroir de Littérature Potentielle), que criava a partir de restrições materiais e conceituais. Este “tipo” de texto dinâmico clama por uma nova teoria. Os jogos computacionais, a literatura eletrônica, a Net Art, a Software Art que utilizam os recursos multimídia, quando não há distinção entre literatura, arte e música, como modalidades são tratados como a arte da interface. Esta arte reflete como as interfaces e a computação em rede transformaram a cultura de maneira profunda.

Autores atuantes na construção de uma teoria das interfaces Espen Aarseth, Jay David Bolter e Richard Krusin, e Lev Manovich mostraram em suas publicações como a teoria da mídia adotou conceitos da ciência computacional, e como a teoria da mídia se torna a teoria do software. Já o exemplo de Andersen e Pold, da guinada do destaque da mídia para o destaque do software, é o festival Readme de arte do software, dos organizadores e artistas Olga Goriunova e Alexei Shulgin junto a outros artistas de Moscou de 2002. Este festival em seus desdobramentos posteriores Helsinki (2003), Aarhus (2004), Dortmund (2005), e sua presença entre os anos de 2001-2007, no festival Transmediale, quando o festival estava sob a direção de Andreas Broeckmann, deixou um legado de publicações como o livro de Mathew Füller de 2008, Software Studies: A Lexicon, e o livro de Søren Bro Pold e Christian Ulrik Andersen de 2011, Interface Criticism: Aesthetics beyond Buttons.

Através de uma perspectiva literária o livro The Metainterface foca a materialidade e a tecnologia da interface e como esta justapõe o operacional ao representacional. Entender como a sobreposição de instrumento e mídia transforma a prática artística é fundamental para identificar as interfaces em suas modalidades expandidas quando as interfaces se tornam em rede—plataformas literárias, smartphones, interfaces da nuvem e urbanas. Segundo os autores, embora o texto tenha se modificado fundamentalmente com os recursos computacionais—estruturas textuais, códigos, gramática, inscrições e scripts—ainda são relevantes as teorias literárias das novas estruturas textuais (Espen Aaseth, N. Katherine Hayles e Manuel Portela) e as teorias literárias clássicas materialistas como a de Walter Benjamin e de outros autores. A literatura aqui incluída no campo maior da produção material e artística, indistingue as práticas artísticas da computação em rede. Por a materialidade técnica do texto algorítmico ser cara aos autores, a teoria das interfaces que os autores abordam se distanciaria da semiologia pós-estruturalista e de uma concepção semiótica.

Ao invés de pesquisar como a interface se adapta às noções pré-existentes de texto e de literatura, o livro seguindo o pensamento de Florian Cramer procura se ater ao papel do texto modificado material e conceitualmente pela interface.

Os computadores equivocadamente entendidos como máquinas ordinárias, quando na verdade são máquinas simbólicas, inexistem sem uma interface. Porém é importante a distinção entre trabalho mental e sua formalização como coloca Frieder Naker, o pioneiro da computação e semioticista da computação. Mesmo que subsidiado na semiótica computacional e estética das interfaces, o livro apresenta um materialismo dialético para os estudos contemporâneos do software e das interfaces. Os autores de The Metainterface exemplificam a distinção entre trabalho mental e formalização com o procedimento de busca realizado na Google por um usuário. Na busca, o usuário ativa um processo de trabalho. Mas o usuário ao fazê-lo se utiliza de formalizações predefinidas, e confia o trabalho à máquina que interpreta os dados. Nesta operação ele esquece os elementos performáticos e conceituais implicados na ação. Ao contrário do que muitos acreditam, a busca não é realizada pelo usuário, mas sim pelo software e sua estrutura tecnológica. De fato, os mecanismos de busca da Google que estão sempre sendo atualizados são reconhecidamente obscuros e não revelam os procedimentos que estão em operação. Assim, continuam obscuros para a maior parte dos usuários mecanismos de busca, servidor e a rede que disponibilizam os dados da pesquisa.

Autores da teoria da estética digital, que estudam software e estética da interface, vão no sentido contrário da promessa do design de interfaces robustas e silenciosas propagadas pelo marketing da realidade virtual 3D. As práticas artísticas que trabalham com interfaces, consideradas pelo livro, referenciam o pensamento crítico que surge da investigação material da tecnologia. A arte da interface não alimenta uma estrutura predefinida existente, ao contrário, transforma o conceito de arte propondo uma relação mais esclarecedora das estruturas de produção material e suas implicações políticas e ideológicas. A arte é em suma uma tecnologia ela mesma. Por isso a defesa dos autores da posição de Walter Benjamin, de uma arte mais consciente de seu tempo tecnológico e suas implicações ideológicas. As revoluções tecnológicas seriam pontos de fratura do processo de desenvolvimento artístico, e é destas fissuras que emergiriam as tendências políticas. Baseada em streaming e licenças, a recente cultura digital com a distribuição em rede de arte, música e literatura desafiou a antiga indústria cultural repercutindo no direito autoral e na privacidade. Este “capitalismo semântico” ou “semio-capitalismo”—quando as mídias sociais são elas mesmas instrumento de modificação social e simultaneamente plataformas de marketing e distribuição da economia do compartilhamento—prenunciariam transformações ainda por vir. A mesma estrutura que responde simultaneamente pela manutenção de serviços “inteligentes” que ela oferece gratuitamente, e pelo modelo de negócio, é ávida por capturar padrões de consumo e comportamento emitidos pelo usuário. As interfaces espalhadas nos bolsos, prédios e paredes, escondidas como sensores como na Internet das Coisas, não são mais restritas ao desktop.

Raramente os usuários interagem solitariamente em seus computadores, mas quase sempre em rede de dados flutuantes dos inteligentes sistemas de software. Estar online ou offline e opor virtual de real é indiferente nas sociedades desenvolvidas, quando as interfaces num constante fluxo de sinais se tornam onipresentes, invasivas, embutidas, móveis, ubíquas, uma parte da rede, menos transparentes e mais imperceptíveis. Emitimos sinais passíveis de ser quantificados pelo sistema quando nos deslocamos no trânsito, pagamos com o cartão de crédito, pesquisamos na internet, nos comunicamos através das mídias sociais, lemos ou assistimos filmes em plataformas eletrônicas, ouvimos música por streaming, participamos de jogos eletrônicos online, navegamos através das páginas de internet com os cookies.

A inteligência das interfaces em rede depende do aprendizado da máquina interpretar o que foi obtido pela mineração de dados. As máquinas não apenas conhecem as preferências e hábitos dos usuários da rede, mas predizem comportamentos de consumo e tendências políticas. Como apontado por Wendy Hei Kyong Chun, uma das referências dos autores, os algoritmos cada vez mais refinados pelo uso de filtros interpretam e aglutinam por “vizinhanças” os hábitos dos usuários, analisando comparativamente semelhanças e diferenças encontradas no amplo banco de dados das estatísticas. Para Andersen e Pold este tipo de inteligência diferiria grandemente dos processos de aprendizagem da inteligência artificial dos anos 80, quanto ao questionamento do Turing Test, de Alan Turing, se seria perceptível uma ação realizada por humanos da por máquinas. A aproximação hoje é reversa, é o humano que se aproxima da máquina. Os modelos capazes de predizer possuem novas formas de agenciamento, quando o sujeito é substituído pelo ator e suas narrativas são substituídas pela captura de suas ações. Segundo Chun estes modelos capazes de predizer comportamento cuja gramática desconhecemos, processam indivíduos, objetos e relações, e dissolvem a desorientação pós-moderna e a incapacidade do sujeito de apreender as múltiplas relações na construção de identidade. As interfaces inscrevem atores e suas ações no sistema inteligente de rede de dados e os encoraja “curtir” ou “retuítar” uma postagem compulsivamente. Os rastros deixados voluntariamente ou involuntariamente nas plataformas sociais pelos sujeitos, quando rastreados por cookies e aplicativos de localização, são inseridos num sistema capaz de análise e crítica. Mesmo quando os usuários “descurtem”, evitam sugestões, e tomam diferentes rotas do que a sugerida, a gramática do sistema não é quebrada, bastando apenas um reajuste para os agrupar novamente por “vizinhança”. No acoplamento das interfaces humano-computador o conhecimento produzido é do mundo e não mais sobre o mundo como o sistema pretendia representar.

As metainterfaces transformaram o mundo em produção e escrita de dados. O “realismo de dados” segundo os autores se sobrepõe ao ilusionismo e à transparência do realismo da tradicional interface. Por isso a janela como interface e metáfora de atravessamento a outros mundos é substituída pela realidade aumentada, ou pela nuvem. Como dito, a cultura das interfaces é determinada pelo entrelaçamento das nuvens de dados, das plataformas de consumo cultural (interligando tablets, livros eletrônicos e smartphones) e da inscrição espacial das interfaces urbanas.

Certos aplicativos são simultaneamente ferramentas de captura, processamento e consumo, e distribuição, e às vezes de curadoria, o que segundo Andersen e Pold permite um processo curatorial automatizado. Um dos exemplos citados é o aplicativo para o iPhone desenvolvido pelo poeta Jörg Piringer, RealBeat de 2011. O aplicativo similarmente aos softwares mais requintados da indústria das gravadoras, com seus estúdios e equipamentos caros, permite a usuários gravar sons comuns do meio ambiente, editar em tempo real e depois os disponibilizar na plataforma. Como nova indústria da cultura, que se distancia da de massas com um mercado em transformação dramática, favorece modelos de streaming e nichos de produção mais independentes. De maneira geral as pessoas gastam mais do que no passado neste mercado. Ler livros, escutar músicas e assistir filmes como engajamentos antes passivos, são parte imprescindível da cadeia de produção por deixar rastros, que auxiliam na bem sucedida predição do que será consumido. O processo de monitoramento, quantificação e cálculo do consumo em ambientes controlados permitem prever comportamentos de consumo.

Plataformas estáveis para produção, distribuição e consumo como Google, Amazon, Apple, etc. representam uma guinada cultural na computação, podendo também censurar e controlar. Alguns aplicativos exploram criticamente os aspectos da cultura da interface e suas redes, formas de exibição, câmeras, acelerômetros, microfones, etc. Obviamente a indústria da metainterface oportuniza os artistas a trabalharem com software, pois seu modelo de negócio os permite receber pelo trabalho e ainda distribuir o aplicativo. Mas isto ocorre com desafios e problemas, pois muitos direitos permanecem propriedade da plataforma. Por exemplo, no software Word da Microsoft, além das facilidades de criação estão embutidas nas tecnologias funções predefinidas que moldam o usuário a um tipo de escrita mais burocrática, voltada a eficiência em termos de negócio.

A cultura do software que antes circulava em âmbito restrito e era geralmente fruto do trabalho compartilhado, tenta se estabelecer e disputar visibilidade frente a outras modalidades mais assentadas como a dos jogos eletrônicos, a literatura, a música e o cinema, com suas sólidas plataformas de produção, distribuição, consumo e crítica. O Festival Readme de Alexei Shulgin e Olga Goriunova pretendia instaurar uma plataforma para pesquisa e crítica do fenômeno cultural do software, mostrando atividades artísticas de autores da estética, sociologia da tecnologia, teoria literária, cultural studies, filosofia e assim por diante, relacionadas à produção e pesquisa do Software Art. Festivais como Ars Electronica de Linz, Áustria, dedicados às artes eletrônica e computacional, só se voltaram mais tarde para a arte do software. O festival Ars Electronica incluiu a modalidade da Software Art na edição CODE, de 2003, sobre a temática do código aberto.

A plataforma do Runme de 2003 (de Alexei Shulgin e Olga Goriunova junto a colaboradores) permitia a participantes cadastrados fazer livremente o upload de seus softwares com uma breve descrição. Todos inscritos seriam disponibilizados na plataforma, mas apenas os escolhidos pelos especialistas seriam comentados e curados dentre uma lista de pareceristas/curadores como Amy Alexander, Florian Cramer, Matthew Fuller, Olga Goriunova, Thomax Kaulmann, Alex McLean, Pit Schultz, Alexei Shulgin, Yes Men, Hans Bernhard e Alessandro Ludovico.

Trabalhos de Jörg Piringer, que exploram o computador como fenômeno estético (integrante da Orquestra de Vegetais performada por instrumentos artesanalmente fabricados à partir de vegetais), quando submetidos a diferentes plataformas como Apple (RealBeat) e Runme (nam shub) evidenciam processos curatoriais distintos. nam shub, um processador de texto de interesse específico da poesia concreta e desdobramentos sonoros que retira da web conteúdo para processar poesia, foi acolhido na Runme. Já na Apple inexistem categorias, apesar da plataforma autonomizar o convite a pareceristas para que escrevam sobre os trabalhos. RealBeat como filiada à corrente da sampler music teve seu acesso às bibliotecas de música de seus usuários impedido pela Apple por violar as leis do copyright pela reutilização de frases musicais. Embora desconheça os conteúdos artísticos e críticos que disponibiliza, a Apple em seu controle curatorial impõe seu manual da interface e o uso do media player para acessar bibliotecas de música. Restrições não exclusivamente técnicas e protocolos de adequação a padrões morais e às exigências de copyright, quase sempre infringidos pelos criadores de software, que fazem parte de um debate cultural maior.

Phone Story do artista e produtor de games Paolo Pedercini (de 2011, produzido pela Molleindustria que pertence ao artista) ilustra o controle exercido pela Apple sobre sua plataforma. Desenvolvido para ser operado nas plataformas Andróide e iOS o jogo permite a usuários jogar em ambientes que narram situações de conflito: a história da fabricação e marketing dos celulares incluindo a exploração da mina de coltan no Congo, a condição crítica dos trabalhadores de fábricas de doces na China com grandes tendências suicidas, e a cadeia da obsolescência programada dos dispositivos e o lixo eletrônico a ser descartado para dar lugar a um novo dispositivo forçando o consumo desenfreado. O site do jogo anuncia que a arrecadação será usada por organizações não governamentais que lutam contra o abuso das corporações. Este jogo evidencia o controle da Apple sobre o consumo cultural, pois foi disponibilizado apenas por algumas horas na plataforma da Apple Store, e a intolerância da companhia por não suportar críticas culturais e políticas. Criticar a indústria da metainterface de dentro de uma de suas plataformas parece impossível.

Antes sociais do que técnicas, conforme Gilles Deleuze, as máquinas analisam os usuários produzindo ou consumindo de uma maneira diferente. O ato de escrever e de ler como uma atividade industrial passa a ser instrumentado, e é fruto de um design. As metainterfaces possuem quatro principais características:

  1. Integração do hardware, do software e da rede de distribuição. Operando em um sistema administrativo “insular” que impede operações de troca com outros sistemas, elas monetarizam e controlam os conteúdos publicados. Por exemplo, no sistema iOS é virtualmente impossível baixar software e aplicativo de outra forma que não seja através da loja da Apple, apesar da facilidade de acesso ao conteúdo e ao aplicativo;
  2. A comercialização não se restringe apenas a produtos, mas abarca serviços em rede nos quais os usuários contribuem compartilhando informações. Referido como capitalismo de vigilância por Shoshana Zuboff, também é conhecido como capitalismo informacional, por predizer e modificar o comportamento humano moldando o consumo e controlando o mercado. Além de pontuar a fidelização de uma corporação ou serviço, monitorar o comportamento se tornou a produção em si. A empresa Uber colhe informação valiosa a respeito da mobilidade do usuário e do comportamento do trânsito, e por isso é um exemplo de empresa de Big Data (grande banco de dados). O acesso ao serviço do modelo de negócio do “compartilhamento” é pago mediante a cessão voluntária de dados. Gmail, Google Docs, Google Drive, Dropbox, são outras plataformas “gratuitas”, serviços de busca, serviços de streaming de mídia que embutem seu preço no “compartilhamento”. Os usuários compartilham e as plataformas das metainterfaces capturam os dados;
  3. A constante atualização de software e hardware, seguindo uma lógica que incompatibiliza o hardware rapidamente para operar os mais recentes softwares, obriga usuários a constantemente adquirir um novo produto;
  4. A integração entre produção, distribuição, troca e consumo nas plataformas de hardware e software e obsolescência programada. Compartilhar não significa apenas indicar uma boa leitura. As plataformas de compartilhamento representadas por empresas tais como Spotify, Facebook, Amazon, dentre outras, passam a ser plataformas de propaganda.

Exemplificam estas características os trabalhos de artistas como Ubermorgen em The Project Formely Known as Kindle Forkbomb, quando o duo de artistas foca a editora da Amazon e a produção textual; John Cayley e Daniel Howe que em seus dois projetos, The Readers Project e How It Is in Common Tongues, se debruçam sobre a Google e como ela transforma o ato de ler e a escrita com a rede de idiomas e línguas das pessoas escrevendo que se tornou mais burocratizada e instrumentalizada; JODI com ZYX e Erica Scourti com Body Scan mostram a interdependência do acoplamento corpo a celulares.

A Amazon antes uma distribuidora de livros que se utilizava da internet para revenda, passou a ser recentemente editora de livros impressos em papel, que imprime sob demanda, e a ter sua própria mídia para a publicação eletrônica, o Kindle. A empresa como uma indústria da metainterface faz streaming de música e de vídeos, vende produtos, e é agenciadora de produções através do crowdsourcing (como o Mechanical Turk). Sua mais ousada inovação é o Amazon Whispernet, um servidor da nuvem conectado à plataforma que hospeda dados de leitura deixados pelo leitor enquanto lê, anota, sublinha um texto, além de outras informações como quando, onde e como.

Desta forma a empresa não apenas oferece uma experiência de compra online através de um clique e faz recomendações a seus usuários, mas exemplifica como a máquina de aprendizagem pode incrementar o modelo de negócio monitorando o comportamento de leitura na internet e no Kindle. The Project Formely Known as Kindle Forkbomb (de 2011–2013), cria um bot autor e uma plataforma parasita dentro da própria Amazon, replicando seus procedimentos operacionais de produção de texto. Inspirados pelos comentários negativos que destacaram a baixa qualidade do clipe musical Friday de Rebecca Black, um vídeo na plataforma do Youtube que viralizou, o duo do Ubermorgen em 2012 em colaboração com Luc Gross e Bernhard Bauch criou um bot capaz de gerar automaticamente livros baseados nos comentários postados sobre vídeos do Youtube e os disponibilizar na plataforma do Kindle da loja do Amazon como e-books. Na linguagem de computação o termo “forkbomb” presente no título do trabalho, é um serviço de recusa a ataques, e como processo contínuo que se replica dentro do sistema, esgota os recursos como um parasita, e por último quebra o sistema. O texto usado como uma “forkbomb” contra a máquina textual do semio-capitalismo espelha a produção de linguagem descontextualizada (coletada da internet e inserida no mecanismo de produção textual), racista e quase sempre homofóbica, dos textos da cultura popular da indústria da metainterface, revelando diferentes relações e níveis de experiência. Num dos e-books You Funny Get Car, produzido pelo bot-autor NrInick Kencals, trinta personagens discutem o vídeo no qual o ídolo Pop Justin Bieber aparece anestesiado no assento traseiro de um carro. A trama é povoada por frases obscenas e odiosas, entretanto o vídeo pertence a outro fenômeno das redes sociais, a plataforma Funny or Die, da funnyordie.com de Will Ferrell e Adam Mckay. Qualquer vídeo pode ser temporariamente hospedado na plataforma. Mas somente os mais votados como engraçados pelos usuários terão lugar assegurado na plataforma. Os personagens da trama do livro ainda discutem se o vídeo de Justin Bieber seria uma paródia e reencenação de outro vídeo massivamente visitado no Youtube, David after Dentist, que mostra um menino voltando da consulta do dentista.

Em 2009 os artistas, escritores e teóricos John Cayley e Daniel Howe iniciaram The Readers Project. The Readers Project mostra a reinvenção semântica da linguagem pelos mecanismos de busca textual, pois os algoritmos também leem e escrevem. A empresa Google—que oferece vários serviços baseados no repositório da computação em nuvem, incluindo e-mails, mapas, processamento de texto, compartilhamento de documentos, e muito mais—é conhecida como um sistema de busca, um browser de internet, cujo sistema operacional é o Andróide. Em seus aplicativos gratuitos a Google captura como as pessoas lêem das maneiras mais complexas, e controla produção, distribuição, e consumo da leitura de textos excedendo a Amazon. Ler, uma atividade antes passiva, se torna produção onde leitores humanos e robôs coexistem, o que implica mudança do hábito de leitura e de políticas. The Readers Project é um software treinado como leitor de textos literários, que lê e reescreve textos e os apresenta aos leitores humanos, dando visibilidade ao modo como o algoritmo lê. O programa oferece a leitores humanos primeiramente ler textos lidos e rescritos pelos algoritmos e em outra interface alternativa, as dicas de leitura dos leitores maquínicos, influenciando a leitura realizada pelos leitores humanos. Desta forma as pessoas se tornam conscientes de como elas leem e de como os algoritmos leem e rescrevem os textos conforme sua própria gramática. Ao escrevermos, no ato via de mão dupla de ler e escrever, somos influenciados pela performance da leitura dos algoritmos que perfaz um zigue-zague através do texto. Desta maneira se tornam visíveis a nossos olhos os agentes algorítmicos em suas ações de correção ortográfica e gramatical da Google, mecanismos de busca, propaganda textual e outros destaques populares, e os leitores se transformam em metaleitores forçados a observar seu próprio ato de leitura.

The Readers Project produziu um livro-de-artista How It Is in Common Tongues, de 2012, que pode ser considerado uma transgressão dos direitos autorais de Samuel Beckett, e potencial violação dos termos de uso da Google. O livro gerado por um script que usa o serviço da Google de busca de dados é baseado na obra de Samuel Beckett How It Is. Restringindo a busca para evitar os textos de Beckett, os autores se utilizaram do serviço de busca da Google para achar em outros textos as mais longas sequências do texto original de Beckett. Assim o livro é formado por sequências de citações retirando-se de duas a cinco palavras da obra de outros autores disponíveis na internet, o que acarreta em uma extensa lista de notas de rodapé, com links das URLs que referenciam a fonte das informações. O livro retira da língua corriqueira palavras de uso comum, e como obra de arte conceitual fruto do trabalho do algoritmo os autores pretendem não ter violado o direito autoral de Beckett. O livro mostra o texto de Beckett como pertencente a uma rede que alimenta e é alimentada por outros textos, uma experiência potencialmente poética e sublime. Desde o advento da imprensa de Gutenberg, a palavra é considerada um commodity. Segundo Andersen e Pold com a instrumentação da palavra com a Google o projeto de hipertexto de Ted Nelson frutificou e se tornou mais efetivo enquanto linguagem interconectada.

Outro trabalho que ilustra como é difícil criticar o sistema de dentro dele, é ZYX de 2012, do grupo chamado JODI, formado por Joan Hemskerk e Dirk Paesmans. JODI é conhecido como um pioneiro da Net Art e outros experimentos que exploram suportes e interfaces de vídeos, games, mapas e mídias sociais. Tendo duas interfaces, um aplicativo de smartphone e uma página na web, ZYX, um software para performance de um tipo estranho de dança, solicita aos usuários ações performáticas como pular, andar em círculo, etc. Quando as ações solicitadas são cumpridas o alarme é desativado e as imagens capturadas durante o processo são mostradas na tela. Embutidos nos aparelhos, sensores como acelerômetro, giroscópio, compasso e GPS têm a função de reagirem ao movimento dos usuários. Paralelamente estes sensores rastreiam os movimentos do usuário e desvelam a constante relação física entre as interfaces e os usuários.  Na página da web o projeto ainda escancara aspectos normalmente escondidos da plataforma do iPhone, como as etapas da cadeia de produção da indústria da metainterface, desde o procedimento de registro do aplicativo e disponibilização na loja da Apple até o código, e exibe a interação difícil entre plataforma da loja do iPhone e JODI. ZYX foi primeiramente descartado pela plataforma por “oferecer uma experiência pobre” ao usuário, para logo mais ser admitido na mesma plataforma.

Em seu trabalho Body Scan de 2014, Erica Scourti, a artista grega que reside no Reino Unido fotografa partes de seu corpo usando o aplicativo CamFind em seu iPhone para buscar imagens semelhantes na internet. Em seu vídeo com enfoque feminista ela funde as imagens de seu corpo às retiradas da internet. Em sua dissertação de mestrado Scourti analisou artistas mulheres feministas que atuam com performance da década de 60 (Valie Export, Martha Rosler, Pipilotti Rist), cujos trabalhos refletem o condicionamento da representação da subjetividade pelas tecnologias. De maneira semelhante ao XYZ do JODI, Body Scan mostra a interface dos celulares acoplada ao corpo de maneira íntima, e ao mesmo tempo interconectada a um sistema de mídia mais amplo. Corpo e tecnologia seriam parte integrante de um sensorium, definido como uma interface simultaneamente humana e não-humana, representacional e computacional. Partindo de imagens estereotipadas enquanto gênero e outras tipologias comerciais, o corpo em Body Scan é “gramaticizado” e “transindividuado” usando os termos de Bernard Stiegler que os autores mencionam. Não é o corpo que é exposto como objeto de consumo, mas a subjetividade é que é afetada em decorrência da leitura deste corpo quantificado, calculado e acessado de diferentes formas.

Na tão propagada indústria cultural, cunhada na década de 50 por Max Horkheimer e Theodor W. Adorno, os indivíduos se exteriorizariam enquanto consumidores. O que a mídia mostra é uma homogeneização da realidade filtrada por uma interpretação, que erradica a individualidade. Como resultado, o estilo de vida industrializado une lazer a trabalho sob a hegemonia do capitalismo e do consumismo. Entretanto para Bernard Stiegler, as possibilidades críticas da filosofia pós-moderna foram minadas pela fábula da sociedade pós-moderna mais permissiva e flexível, caracterizada pelo lazer. Segundo Andersen e Pold, a linhagem crítica pós-fordista, da sociedade da informação imaterial e da economia do conhecimento se pautou mais na teoria da mídia, seguindo a reflexão de Marshall McLuhan—não desmerecendo as reflexões seminais de McLuhan—, repercutida em seus seguidores da ideologia californiana da revista “Wired”, e menos no entendimento das condições materiais de produção da indústria cultural. Termos como coprodução, interatividade e participação aparentemente pareciam liberar a indústria de uma estandardização. Mas o que temos na indústria da metainterface é o controle do consumo. Nunca o acesso a publicações de conteúdo cultural foi tão aberto. Todavia, substituindo os supermercados periféricos de antes, as plataformas da indústria da metainterface disponibilizam aplicativos online de música, livros, vídeos etc. que colhem informações preciosas para refinar ainda mais os perfis dos consumidores. Esta indústria capitaliza com nossa experiência e monopoliza a indústria da experiência.

A objeção de Andersen e Pold ao pensamento crítico sobre a indústria cultural como formulado por Adorno e Horkheimer que denunciaram a mídia e a tecnologia, é que estes autores não consideraram como as mídias se tornaram parte da percepção e memória. Da mesma forma a importância das colocações de Walter Benjamin em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica lhes fugiu inteiramente. Em cartas Adorno havia criticado Benjamin por sua análise de obras do cinema da cultura popular, ao invés de ter usado exemplos da alta cultura como queriam. Em suas percepções da tecnologia não conseguiram ver a tecnologia e a mídia como possibilidade crítica.

A mídia e a tecnologia podem ser exploradas criticamente pela maneira como os trabalhos são produzidos. A arte é sujeita à indústria da metainterface, mas também a arte pode criticamente explorar a indústria da metainterface como mostram Andersen e Pold. Seguindo o pensamento de Walter Benjamin a arte mostraria fissuras criadas pelas revoluções tecnológicas, que acentuariam o caráter crítico e político dos trabalhos. A criação artística poderia explorar a condição material de produção tecnológica e os atritos advindos desta guinada em termos de direito autoral, percepção corporal, e uso da linguagem. Hoje a indústria cultural como formulada por Adorno e Horkheimer, que apontaram para os efeitos da indústria cultural no capitalismo e na linguagem, se tornou tecnologizada e digitalizada através das metainterfaces. Uma prática artística crítica tende mais à exploração da condição material e tecnológica da produção das obras e menos para as qualidades abstratas.

Quando falamos da cidade como uma interface—uma experiência mediada fruto de um design que torna os “vazios” urbanos em experiências produtivas voltadas ao consumo—não há como fugirmos do pensamento neoliberal da cidade inteligente. A cidade como um “scripting space” como um espaço roteirizado (lembrando os mapas e roteiros de trajetos efetivamente percorridos por Walter Benjamin) que se tornou uma tessitura textual com cartazes, signos e mil atrativos.

Como em capítulos anteriores justificando o uso da teoria da interface, ou apresentando a indústria da metainterface, no terceiro The Urban Metainterface Andersen e Pold discorrem sobre as interfaces territoriais e a nova metainterface urbana com um exemplo de aplicativo artístico: Las calles habladas/Spoken Streets de Clara Boa e Diego Diaz de 2015. O aplicativo funciona como um guia de áudio que disponibiliza fatos, imagens e informações sobre os lugares ao longo do trajeto percorrido pelo usuário. O usuário navega em um espaço que corresponde simultaneamente ao espaço concreto, mas também ao espaço informativo textual capturado dentro de um universo saturado de inscrições de todos tipos, frases da internet, postagens do Twitter ou do Facebook, símbolos, números e URLs, que são lidas pelo aplicativo. É com este trabalho que os autores exemplificam a semiotização da esfera urbana. A ocupação dos espaços da cidade sempre foram uma arena de disputas de poder, uma certa territorialização. Esta semiotização do espaço urbano afetada pela indústria da metainterface age diretamente sobre as zonas de cobertura das redes móveis, de acesso livre de WI-FI, fachadas eletrônicas, painéis, propagandas, etc. modificando as maneiras pelas quais a cidade é lida, percebida e reorganizada. Com a cultura da Net vários serviços como Uber, AirB&B, TripAdvisor e outros que compartilham formas de hospedagem, de deslocamento, de diversão e de cultura gastronômica possibilitam ao visitante experienciar e se apropriar da cidade da forma como os habitantes o fazem. A cidade além das praças, prédios e monumentos—vias de locomoção com viadutos, pontes e túneis, malhas de sistema de transportes metroviário, rodoviário, ferroviário e aeroviário, e suas possíveis conexões com as estações de distribuição do metro, rodoviárias, ferroviárias e aeroportos—é experienciada pelo visitante que cria sua própria narrativa e roteiro da cidade através de serviços sincronizados em rede que rastreiam seu deslocamento e unem mapas, informação, comunicação e simulação do espaço urbano. Por esta razão o discurso da cidade inteligente, smart city, deve ser evitado segundo os autores que pretendem oferecer uma perspectiva diferente da metainterface urbana relacionada à história política do desenvolvimento urbano e midiático.

O espaço urbano seria um ato discursivo. Referenciando Barthes que compara o leitor de 100,00 Million Poems de Raymond Queneau—membro do grupo de vanguarda Oulipo que rompeu com as convenções literárias do livro impresso—ao visitante que combina roteiros e reabre diferentes possibilidades de percorrer a cidade, Andersen e Pold apontam para a prática discursiva e social de produção de significado da urbis, ao inserir o visitante como parte movediça e integrante do mapa interativo que desarticula a possibilidade de deriva ou fuga. A cidade como espaço altamente midiático, é uma escrita textual urbana que se abre a outras textualidades, a exemplo dos livros que propõem diferentes leituras e combinações textuais. Na tessitura urbana, que é o locus do consumo, a escrita adquire uma tridimensionalidade com os comerciais.

A cidade em sua materialidade organizacional com sua arquitetura e malha de transporte urbano é exposta como uma experiência cinemática que traz seu manual instrutivo. Instrumentalizada como uma interface a cidade é perscrutada visualmente com câmeras, o que pode ser revertido caso abra seus painéis eletrônicos a proposições artísticas/ativistas que não favoreçam seu uso em prol da espetacularização do espaço urbano saturado de mídias; e é roteirizada segundo instruções e algoritmos que reconfiguram a experiência da cidade como espaço compartilhado. 

Exatamente quanto ao uso de painéis e fachadas eletrônicas, os autores parecem oscilar entre o fascínio, por um lado acreditando na abertura propiciada pelo uso artístico do território urbano que ainda não foi totalmente reivindicado pelas corporaçõescomo no caso dos painéis eletrônicos no exemplo pioneiro Hole in Space de 1980 de Sherrie Rabinowitz e Kit Galloway, que conectou o Lincoln Center for Performing Arts de Nova Iorque com o Century City, um shopping center aberto da cidade de Los Angeles, e das recentes especulações de arquitetura relacional de Rafael Lozano-Hemmer de 2001, como Body Movies, que transformou a fachada do prédio Pathé Schouwburgplein em Roterdã, com projeções cinemáticas de sombras de retratos—, e a crítica por outro, ao constatarem como hoje os painéis fazem parte da estrutura do sistema de vigilância das câmaras distribuídas pela cidade. O positivismo com que veem estas estruturas contrasta com a denúncia que fazem do uso de dados das plataformas de redes sociais na indústria da metainterface. Faceless de Manu Luksch de 2007 é um filme de cinquenta minutos produzido todo com material disponibilizado pelo circuito de câmeras de vigilância da cidade de Londres, conhecida pela quantidade excessiva de câmeras. Baseada na lei britânica de proteção de dados de 1998, que diz que as pessoas podem adquirir as cópias onde aparecem, a autora encenou diante das câmeras de vigilância da cidade. Mas como nem todas as filmagens do CCTV (circuito fechado de televisão) puderam ser adquiridas, o roteiro ficou sendo continuamente reescrito. Em algumas oportunidades como em The EyeChoreography for surveilled space de 2007 a performance realizada como evento público foi capturada por uma câmera de teto, quando 80 dançarinos performaram diante das câmeras de vigilância de um shopping center. Mukul Patel, o compositor do filme, comentou que Faceless trata a imagem do CCTV como exemplo de um readymade legal (objet trouvé) e tira proveito da estética das imagens de câmera de vigilância, cor saturada, perda de foco, imagens super expostas, e ponto de vista fixo. O filme reflete a política do espaço e do tempo de uma cidade rodeada por câmeras. A infraestrutura óptica autônoma e o controle de dados estão operantes em Faceless.

O viés crítico adotado tenta exemplificar dois conceitos: “optical unconscious” de Walter Benjamin e “mass ornament” de Siegfried Krakauer. Para Benjamin o olho foi substituído pela câmera que tudo vê dentro de seu plano focal e assimila ininterruptamente, e para Krakauer o processo de produção não é totalmente assimilado pelos indivíduos. Como a criação de padrões multicor em um estádio de futebol, com indivíduos treinados a formar pixels de cor e representar coletivamente uma imagem, que enquanto participantes compõem o “ornamento” mas são incapazes de apreender a totalidade da imagem a não ser através da tomada aérea da câmera ou drone. O que não fica muito claro é como os autores creem ser possível uma resistência ao “optical unconscious”, “inconsciente óptico” que seria mais uma “autonomia óptica” das câmeras, e o controle de dados do “mass ornament” que contribui para a espetacularização das cidades panorâmicas.

A reconfiguração da experiência urbana com suas milhares câmeras, implica em uma vigilância panóptica mais efetiva do que as prescrições e manuais de uso das cidades.

O exemplo dos autores Serendipitor, de Mark Shepard de 2010, revisita a prática espacial da deriva psicogeográfica dos Situacionistas que dissolveram os contornos entre público e privado. Segundo os autores foi Simon Sadler quem apontou que a prática dos Situacionistas é uma reposta ao projetos de zoneamento das cidades, dividindo-as em zonas de moradia, trabalho, lazer, e projetando uma malha de transporte urbano que atende funções específicas, como o ir e vir da massa de empregados ao lugar de trabalho ou de efetivos administrativo-governamentais das instituições públicas que regulam a cidade. O aplicativo para celular Serendipitor instrui o usuário a olhar os arredores e fotografar coisas inusitadas ou acompanhar pessoas solitárias em seus trajetos, sem objetivar o alcance mais eficiente a determinados locais. Provoca uma experiência mais subjetiva inerente à aleatoriedade que esgarça a máquina social e a planificação das metas no deslocamento através da topologia da cidade.

O fenômeno provocado pelos jogadores do Pokémon Go—que se deslocam na cidade de maneira aleatória ao ver dos observadores, mas seguindo regras do jogojunto ao fenômeno do “mass ornament” fez com que os autores chegassem à formulação do “data unconscious” que dialoga com o termo “inconsciente óptico” de  Walter Benjamin. Não se trata apenas de substituir a apreensão do campo visual do olho pela da câmera, pois a realidade de números e dados abstratos foge à percepção humana, e só é legível ao analista de banco de dados.

Muitos artistas e projetos se utilizam do material armazenado nos bancos de dados, ainda no raciocínio do readymade legal (objet trouvé). Outro exemplo citado pelos autores e ovacionado por Florian Cramer como a poesia Perl—realizada com a linguagem computacional Perl—, é o projeto London.pl de Graham Harwood e sua equipe de colaboradores, de 2002, que é uma versão do poema de William Blake. Perl é uma linguagem complexa de programação que usa a escrita e não os ícones, cuja sintaxe foge ao entendimento fácil, muito usada como código de poesia. Para Florian Cramer este trabalho segue a linhagem vanguardística do Oulipo por reescrever com a linguagem de programação Perl a poesia London de William Blake—que fala da opressiva paisagem sonora das disputas econômica, social e política de classes que antecipou a Revolução Francesa, sons desarticulados de crianças chorando, homens, soldados e prostitutas—, e entrelaçá-la com a tessitura da cidade dos dias atuais. London.pl transforma os gritos das crianças em alguma coisa mensurável. A indignação do poeta diante da realidade opressiva é transformada em valor obtido por um cálculo impessoal (expectativa de vida, população, capacidade pulmonar dentre outros parâmetros medidos). A cada grito emitido pelo computador vemos o trabalho computacional ao disponibilizar uma mídia de áudio e ao mesmo tempo realizar estatísticas analíticas mostrando como a degeneração social tem seu correspondente numérico o que, entretanto, não terá ressonância no emissor que permanece indiferente, no caso o computador. Este fato segundo os autores é devido à perda do contexto, e faz parte do processo de funcionalização e “datafication” da realidade. Os dados obtidos pelos avanços da ciência da estatística são usados para modelar a aleatoriedade do comportamento habitacional, por exemplo no planejamento urbano que pretende administrar a cidade como um organismo complexo. Controle espacial e capitalização de dados junto à captura da linguagem transformam os murmúrios humanos em objetos, alvos dos processos de cálculo e da “datafication”.

Outro termo que surge da reflexão das metainterfaces é “algorithmic gaze”, “olhar algorítmico”, cunhado por Stephen Graham e relacionado a toda visualidade obtida com tecnologias bélicas como drones e câmeras de rastreamento. O mesmo termo foi sugerido pelo pioneiro de arte computacional, Friedrich Nake, para se reportar não à visualidade, mas sim ao processo de raciocínio computacional. As impressões de seus desenhos computacionais realizados com a ZUSE Graphomat Z64 demoravam horas, permitindo a Nake acompanhar em tempo real a apropriação da máquina como se fosse a operação de desenhar.

Deixando de lado a dimensão óptica e computacional das metainterfaces os autores passam ao discernimento dos conceitos open source e free software, mantra tão pregado pela open society, sociedade aberta, democracia de multitudes. Para esta autora que escreve a resenha baseada na experiência brasileira dos últimos anos, a abertura propiciada pela cultura da internet, quando o público se comporta como um consumidor ávido por novos aplicativos não fazendo uso crítico, e é iletrado em termos de linguagem computacional, a diferenciação entre estes dois modelos e os resultados são um tanto turvos. Andersen e Pold acreditam que uma “revolução social” seja possível, apesar das evidências que esta cultura instrumentalizada apresenta, que plataformas sociais que disponibilizam software gratuitamente não mantém comprometimento político verdadeiro.

Muito antes do conceito da arquitetura computacional em nuvem—cuja infraestrutura permite que hardware e software sejam hospedados em algum lugar remoto transformando o computador pessoal em algo mais portável e leve—a internet era um espaço utópico ocupado por alguns internautas. Hoje o que caracteriza a computação em nuvem é a confluência da cultura da internet com o novo modelo de negócio, que disponibiliza espaço de armazenamento, distribuição e software num mesmo pacote.

Alguns trabalhos referenciados como pós-internet, ou pós-conceitual ilustram a atitude do usuário de alienação ao delegar a um serviço a responsabilidade de armazenamento do que produz. Super Mario Clouds de Cory Arcangel de 2002 é uma versão hackeada do jogo de 1985, Super Mario Bros da Nintendo. O artista conhecido por se apropriar de interfaces tecnológicas populares como jogos, websites, imagens editadas, retira todos os elementos do jogo deixando apenas como fundo um céu azul e nuvens complacentes que se movimentam. Outro é Summer de 2013, de Olia Lialina, uma animação GIF de 21 imagens que mostra a imagem da artista em trajes de verão balançando ao vento. Cada uma das imagens são armazenadas em diferentes servidores e a corrente que sustenta o balanço parece estar presa à barra superior da janela do browser. O trabalho revisita a promessa de uma Net Art dos anos 90. É também uma metáfora da internet dos primeiros tempos povoada por amadores que sonhavam com um espaço social e colaborativo, imaginário e descentralizado. Onde o afeto não era monetizado e a arquitetura vernacular não era tomada por iniciativas corporativas da indústria da metainterface.

A computação em nuvem substituiu a cultura da Net—onde usuários e provedores de conteúdo se relacionavam de maneira mais igual—por uma que limita a intervenção do usuário e é regida pelo controle de conteúdo e sua distribuição, de acordo com as distinções geográficas de copyright. Na interface da nuvem o usuário não sabe de onde vem o stream de conteúdo, por exemplo a música que ouve, mas a plataforma sabe onde o usuário está. A estrutura heterogênea da cloud computing propicia uma experiência de suavidade ininterrupta pretensiosamente imaterial. Por esta razão muitos artistas escavam a cloud computing na procura de sua materialidade que é escondida.

No filme de Timo Arnall, de 2014, Internet Machine, a estrutura material de discos rígidos, cabeamentos de fibra ótica, roteadores e servidores constantemente refrigerados, longe do alcance dos humanos, conceitualmente explicada de maneira abstrata como nuvem, é mostrada como algo quase sagrado, protegido a sete chaves. O locus da globalização per si é um lugar inalcançável. A experiência final do usuário—combinando mídia e ferramentas seja através de interfaces gráficas ou de comando de texto—não revela as várias camadas e operações que fazem a nuvem funcionar. Sistemas operacionais, linguagens de programação, diferentes hardware e software que são imperceptíveis ao usuário final. Seu uso disseminado e global é invasivo e ubíquo, acoplando parte dos ambientes a seu sistema. A nuvem engolfa a multiplicidade de sua complexa arquitetura. Como tecnologia ela também é herdeira das empreitadas militares de cunho nacionalista. De um lado ela disponibiliza a coletividade pretendida pelos pioneiros da cultura da Net, e por outro ela segue as estratégias de poder. Longe de anular as referências espaciais e propriedades materiais, ela é a reemergência da soberania de poder colocada no mais alto topo de todas as infraestruturas.

A computação em nuvem aliena os usuários de acordo com os autores. A dimensão global da nuvem que se transforma cada vez mais em plataforma comercial, tem por detrás de seu funcionamento de disponibilização de espaço de armazenamento e streaming de mídia a característica de um aparato militar. Um dos trabalhos que os autores elegeram para discutir este aspecto é Tantalum Memorial, de 2008, da dupla de artistas YoHa (Matsuko Yokokoji e Graham Harwood) em colaboração com Richard Wright. A instalação discute o pós-colonialismo e homenageia as mais de 4 milhões de vítimas do conflito territorial violento da disputa entre Ruanda e Uganda, que ocorre na República Democrática do Congo, pela extração do metal tântalo usado na fabricação de celulares. Na extração conhecida como Guerra Congolesa do coltan estão implicadas várias companhias ocidentais. Criada tendo como ponto de partida o sistema telefônico social Telephone Trottoir, também elaborado pelos artistas para beneficiar os imigrantes congoleses no Reino Unido, que são convidados a gravar uma mensagem para enviá-la a seus destinatários, a instalação bizarra e ruidosa usa os switches dos primeiros aparatos automáticos de 1891, que conectavam chamadas telefônicas ligando o mensageiro ao destinatário final. A instalação propõe um aparato de rede descentralizado e não comercial. Outro trabalho eleito é OCTO de 2013 do coletivo Telekommunisten, exposto no Transmediale do mesmo ano. A instalação usa um sistema de tubos pneumáticos para transportar objetos em cápsulas a diferentes pontos. Entre os anos de 1865 e 1939 este sistema tinha a robustez de uma malha de quatrocentos quilômetros nos subterrâneos de Berlim. E foi utilizado até 1976 em Berlim do lado oriental. Mesmo nos dias de hoje este sistema é utilizado por hospitais e outras instituições que necessitem transportar objetos físicos. A instalação reproduz uma tecnologia obsoleta de um aparato centralizado para provocar a reflexão de que velhas tecnologias foram apenas revestidas pelas propagadas redes do novo capitalismo. Na verdade, estas estruturas de sistemas de dados, da globalização de bolso, continuam as velhas estratégias nacionais de territorialização, governança, de interesse econômico e político. Este aspecto ficou mais evidenciado na mídia com a guerra contra o terrorismo e a avalanche de informações que foram vazadas desde o evento da guerra do Afeganistão. The Endless War, novamente da dupla YoHa em colaboração com Mathew Fuller, traz o caso famoso de 2010 quando Chelsea Manning entregou ao WikiLeaks uma quantidade de dados sobre a guerra do Afeganistão, antes sigilosos. Trata-se de uma instalação de vídeo com projeção em três telas que mostram uma busca em tempo real em um banco de dados. Apesar de ser inacessível, pois as informações mineradas são fragmentadas, a instalação mostra ruidosamente como trabalham os algoritmos do banco de dados da nuvem desenvolvida pelos militares americanos, Combined Information Data Network Exchange, CIDNE, e sua interpretação de signos e linguagem. Sobre o material vazado muitos jornalistas se debruçaram para interpretarem as informações desconexas. Implícitos nesta instalação está a inteligência linguística formal de humanos e não humanos, mostrando a abstração da estratégia militar e o caos das atividades executadas a distância, que se transforma em um órgão sensorial do sistema militar, através da técnica conhecida como “data atomization” que reparte a informação obtida sem qualquer referência e a armazena em partes, em diferentes lugares passíveis de serem acessadas e mineradas futuramente à procura de significado; e como estas operações abstratas têm suas consequências éticas na vida real. A instalação reproduz a alienação trágica da nuvem que transforma a guerra contra o terrorismo em atividade burocrática.

A nuvem é vendida como tecnologia sustentável que não emite poluentes, por empregar servidores centralizados e possuir recursos para refrigerá-los de maneira apropriada e econômica. As proposições artísticas ligadas à denúncia da mudança climática, complementando o exemplo do início do livro do trabalho de Joana Moll, CO2GLE, que mostra que a atividade global de navegar na internet emite na atmosfera uma quantidade de dióxido de carbono comparável ao emitido pela aviação, não chegam ao criticismo das que denunciam a nuvem como um sistema computacional ubíquo e invasivo, centralizador e territorialista. Nuage Vert 01 de 2008, do duo HeHe, Helen Evans e Heiko Hansen, cria uma nuvem verde saindo da chaminé de uma usina de energia de Helsinki. A nuvem sinaliza o nível de consumo de energia da cidade. Quanto maior é a nuvem, menor o consumo de energia. Outro projeto, Snow—A Story in Progress, Weather Permitting, de 2014 aos dias de hoje, de Shelley Jackson, relacionada à tradição da Land Art e ao ativismo, é uma proposição efêmera de escrita sobre a neve como suporte. As palavras escritas sobre a neve são documentadas como fotografias e disponibilizadas na internet através do Instagram. Embora permaneçam em exibição na internet, em seu registro material no local elas são ligeiramente esvanecidas.

A nuvem, segundo os autores, modificou nossa percepção de mundo, nos permitiu compreender a complexidade em escala global de riscos de desastres ecológicos e a fragilidade dos modelos de preservação ambiental, a ameaça dos conflitos armados em diferentes contextos políticos-geográficos, e a repercussão de como decisões governamentais e militares antes sigilosas, que nos chegaram através do vazamento do WikiLeaks, afetam nossas vidas; e por isso a nuvem mereceria ser reconhecida como um potencial para ações coletivas.

E por último os autores se voltam para o contexto histórico e o estado atual da pesquisa escandinava sobre Participatory Design, que tem como propósito evitar a alienação dos trabalhadores num cenário profundamente modificado pelas tecnologias da informação. Ecoando a pergunta “Vocês disseram que queriam uma revolução?" Andersen e Pold partem do imaginário de 1984 do livro de George Orwell para mostrar a bifurcação entre a abordagem da metainterface como design de uma ferramenta e como fenômeno cultural. Os exemplos artísticos não são aqui o argumento principal para a participação em uma revolução cultural, e a discussão se volta para o design da interação humano computador, HCI. Para os autores as evidências de que a Apple armazena dados de seus usuários ao lerem, ouvirem música e etc., não ofuscam a inovação da computação realizada pela Apple. A computação realmente adquiriu outro status como ferramenta e fenômeno da cultura, se distanciando das atividades puramente burocráticas dos escritórios e da opressão da cultura da vigilância das grandes corporações militares. A presunção é a de que a computação emancipa, transforma o consumidor em prosumer, um produtor/consumidor.

O livro percorreu autores e artistas para demonstrar como o sonho de um futuro tecnológico emancipador foi instrumentalizado e sucumbiu aos interesses do capital. E clama para que desenvolvedores de software, acadêmicos, críticos literários, legisladores, e editores não abandonem o sonho de pioneiros como Ted Nelson, de uma internet responsável por mudanças. As Software Art e Net Art dos anos 90 e 2000 ilustravam a linguagem da computação como uma linguagem sofisticada não humana, capaz de aglomerar dados que estariam sob escrutínio dos cálculos.

A pergunta que os autores fazem é como desenvolver estratégias para o design de interface usando a sensibilidade crítica e alimentando novos imaginários tecnológicos? Em suma, como usar estrategicamente a alienação decorrente do uso das metainterfaces? Os autores acreditam que isto é possível através de duas guinadas: a primeira, seria o desvio do desenvolvimento de ferramentas do design participatório para o design participatório do dispositivo; a segunda, seria a guinada das realidades especulativas do design crítico para uma formação tática da realidade. Pois implícito no design de uma ferramenta está o processo de trabalho a ser executado com ela, e segundo Andersen e Pold é urgente a criação de uma interface tática. Tactical Media é um termo que surgiu do uso de David Garcia e Geert Lovink para cunhar formas de intervenção de mídia ativismo usando tecnologia barata de sucata de eletrônicos e DIY. O termo deriva por sua vez do trabalho de Michel de Certeau em seu livro The Practice of Everyday Life.

Por esta razão os autores clamam por uma reengenharia das metainterfaces, para a sensibilização quanto ao funcionamento do dispositivo, que no caso do dispositivo cinematográfico por exemplo, ficou claro já nos anos 70 que se trata de um dispositivo tecnológico, institucional e ideológico. Esta tarefa já tinha sido evocada por Walter Benjamin, que queria que o escritor se colocasse como um engenheiro e adaptasse sua ferramenta aos propósitos da revolução proletária. O desafio a ser enfrentado é arquitetar transformação social e aparelhar a comunidade com ferramentas para a prática social da realidade alternativa desejada. Os autores chamam a atenção de que existe formatos culturais que transgridem a distinção entre artístico e não artístico. A defesa de Mathew Fuller de proposições não exclusivamente artísticas (not-just-art que é relacionado à Software Art) é a de combater o poder instituído descolando a ferramenta do usuário (fazendo com que a ferramenta seja perceptível). Web Stalker é o trabalho de Mathew Fuller de 1997, que é um browser que dá a visualização da estrutura de links da internet ao invés de abrir as páginas de HTML. Como hoje conhecemos, os gráficos sociais não conectam mais endereços de URL. Mostram perfis e maneiras de viver, consumir e produzir na sobreposição das redes sociais formadas por amigos dos usuários revelados pela navegação que une lugares, aplicativos e instituições visitadas.

E finalizando o livro os autores dedicam algumas linhas para falar de dois projetos em âmbito acadêmico do qual fazem parte: The Poetry Machine (de 2012 aos dias atuais) e o jornal A Peer-Reviewed Journal About_ (de 2011 aos dias atuais). O primeiro é uma instalação onde três livros contendo sensores podem ser lidos através do monitor LCD. Os visitantes ao manipular o livro escolhem sentenças e as combinam, podendo também armazená-las no site ou imprimi-las em papel. A instalação oportuniza leitores a acompanhar a transformação ocorrida na produção de um livro, e como esta coexistência de várias tecnologias são interconectadas. O segundo é um jornal de pareceristas. Sabemos o quanto a produção acadêmica está sob o crivo do fator de impacto, que é importante para legitimação da produção de conhecimento e também como um índice que facilita o investimento dos órgãos de fomento na produção de grupos de pesquisa e na formação do currículo. O jornal atendeu ao anseio de imaginar e formar uma comunidade crítica. Utilizando-se duas listas de discussão, Nettime e spectre para fazer a chamada aberta para participação em um workshop a pesquisadores em geral e doutorandos, o jornal estabeleceu parceria com o festival Transmediale que ocorre anualmente em Berlim. Num primeiro momento os participantes selecionados escrevem sobre suas pesquisas em um blog. Depois em uma segunda etapa quando ocorre o workshop, os projetos são discutidos presencialmente. Numa terceira, com os artigos selecionados o jornal é impresso e apresentado no Festival do Transmediale e distribuído fisicamente em outras instituições parceiras. E por último, os participantes são convidados a submeter versões completas de seus artigos ao jornal, que serão avaliados cegamente pelos pareceristas do APRJA.

Este jornal para os autores é um esforço para criar uma comunidade de pesquisadores encorajando-a a se permitir outras visões e formas de compartilhamento, e fazer presença contra a tendência comercial das editoras universitárias, que ganharam uma fatia do mercado considerável, mostrando que os fatores de avaliação necessitam ser revistos, e que pesquisadores e comunidades de pesquisa não são dependentes das medidas como fator de impacto e da quantificação de citações.

Abandonando a ferrenha defesa da tecnologia como puramente funcional e a obstinação pelas ferramentas utilitárias, os autores esperam tornar os usuários mais conscientes e menos alienados através da análise e da teoria crítica da interface, fazendo-os entender um pouco mais sobre os dispositivos não exclusivamente humanos, e incentivá-los a construir um futuro tecnológico partilhável.

 

Biography

Yara Guasque is an independent artist and researcher and retired associate professor at the Postgraduate Program in Visual Arts of UDESC (State University of Santa Catarina), Brazil. Licenciate in Art Education (Alvarez Penteado Foundation FAAP); Master in Literature (Santa Catarina Federal University, UFSC); PhD (Communication and Semiotics Program of PUCSP); Post-Doctoral at the Aesthetics and Communication Department of Aarhus University 2012/2013.

  • 1Nos exemplos trazidos à luz pelo livro The Metainterface se evidencia a colaboração de ideias e estudos críticos entre outros autores aqui recorrentes, colegas de departamento, pesquisadores acadêmicos como Geoff Cox (Speaking Code. Coding as Aesthetic and Political Expression, The MITpress Cambrigde, Massachusetts; London, England, 2012), Tatiana Bazzichelli (Network Disruption. Rethinking Oppositions in Art, Hacktivism and The Business of Social Networking, Aarhus: Aarhus University, Digital Aesthetics Research Center, 2013).
  • 2Tive o privilégio de conhecer pessoalmente estes autores durante meu estágio de pós-doutoramento na Universidade de Aarhus sob a orientação de Christian Ulrik Andersen, e ouvir outros tantos citados neste livro como palestrantes nos eventos da Universidade Aarhus, como Olga Goriunova, Bernard Stiegler, e Wendy Hei Kyong Chun. Também os exemplos artísticos me são familiares, apresentados em simpósios em Aarhus como por exemplo a Media Architecture Biennale, MAB, de 2012, que tem relação com as metainterfaces urbanas, discutidas neste livro. Aliás quanto a publicação e Workshop argumentada no final deste livro, A Peer-Reviewed Journal About, APRJA (https://www.aprja.net/publication-3/), participei do Volume 2, Issue 1 de 2013 sob o tema do Trasmediale do ano, #BWPWAP, desde o Workshop ocorrido ainda em 2012 na Universidade Leuphana em Luneburgo, Alemanha, discutindo as apresentações dos projetos e artigos de doutorandos e pesquisadores que culminaram na publicação do volume do APRJA, no qual tenho um artigo, e depois distribuição gratuita no Transmediale de Berlim, no início de 2013, com a apresentação de alguns autores publicados. Também pude conferir a instalação OCTO de 2013 do coletivo Telekommunisten, exposto no Transmediale do mesmo ano.