Uma das coisas que sempre me impressionou nas viagens que fiz ao Hemisfério Norte é a dificuldade que encontramos, em quase todos os países da Europa e na América do Norte, para explicarmos duas características presentes desde a colonização no Brasil: o Barroco e a questão da Antropofagia.

Quanto ao primeiro, talvez seja mais fácil explicar que os traços que se traduzem nessa espécie de anti-estilo que é o Barroco, variam de um país para outro e tendem a produzir diferenças notáveis, por exemplo entre o Barroco espanhol e o alemão. E que, como alguns já disseram, é notável a coincidência entre essa estética e o momentos histórico da colonização, o que talvez explique sua presença até hoje entre nós, naturalmente devorada e metabolizada por um olhar negro-indígena. O que nos leva à questão da Antropofagia.

Outras complexidades aí se avolumam.

Dentre as formas culturais confrontadas pela colonização jesuíta, disseminadas em boa parte das nações indígenas que povoavam o território brasileiro entre os séculos 16 e 18 estavam a poligamia, o xamanismo e a antropofagia. Todas essas práticas foram objeto de perseguição implacável, a partir do juízo fundamental segundo o qual tratavam-se da expressão da selvageria e da barbárie, inadmissíveis aos olhos dos invasores. Sob o pretexto de eximir os indígenas de uma vida em pecado, em suposto estado de barbárie, foram formas perseguidas com interdição e, em casos de resistência - e depois, em qualquer caso - de sumário extermínio.

A antropofagia - a ingestão ritual  (é importante destacar) do inimigo, para absorver suas virtudes  era uma forma de relacionar-se com os outros, dentre eles selecionando aqueles cujas virtudes ou traços de força o vencedor pretendia absorver.

De acordo com a forma de apreensão do mundo por critérios animistas, ainda hoje presente na maioria das civilizações e povos originários, esta apreensão somente ganha existência concreta quando é incorporada, isto é, absorvida pelo próprio corpo. A ingestão do inimigo era um gesto de homenagem à sua coragem, sua absorção garantindo que a passagem do tempo fosse sempre renovada pois os descendentes dos vencedores poderiam no futuro ser alvo dos derrotados, num processo cíclico e infindável movido pela ingestão do outro, pela incorporação da alteridade.

Normalmente quando falamos sobre essa prática, ainda que como metáfora da absorção da cultura do estrangeiro, os intelectuais formados no racionalismo europeu tendem a estranhar o raciocínio, imaginando que se trata de uma defesa, até certo ponto ingênua, de um ato barbarizante.

De fato, é difícil absorver algo que foi demonizado pela cultura colonialista que, nos anos do Iluminismo, promoveu, em seus territórios - tomados às nações indígenas e com o uso de mão-de-obra negra africana escravizada - alguns dos maiores saques de riquezas de que se tem conhecimento na história. Ao mesmo tempo que o “século das luzes” anunciava a aurora e consolidação do pensamento racionalista, a matança nas colônias européias e nos emergentes países da América do Norte eliminava a população indígena e garantia a posse de vastas porções de terra para elites escravistas.

No Modernismo brasileiro deu-se um processo de abandono da influência estrangeira nas artes, muito presente sobretudo aquela de acento francês, que encantava a elite dos proprietários de terra e fazendeiros de café, milho e algodão. Os artistas do Modernismo, não obstante, oriundos dessa mesma elite mas em desacordo com seu pensamento estético, buscaram com interesse o que, na Europa, era também alvo de atenção: o primitivo, o exótico, combinados a um entusiasmo com o mundo industrializado. Dentre os movimentos de vanguarda desse Modernismo, porém, um dos últimos, de fins dos anos 20, liderado pelo poeta paulista Oswald de Andrade, tomou rumos um tanto diferentes. Ao invés de exotizar o índio brasileiro ou a realidade semi-agrária do país, Oswald propôs a recuperação metafórica da antropofagia ritual, justamente aquilo que fora objeto da mais absoluta interdição imposta pela Coroa Portuguesa e pela Catequese Jesuítica. 

Em 1928, lançou o Manifesto Antropófago, recuperando uma imagem que, já àquela altura, se sustentava em uma prática entendida como pura selvageria. Mais do que isso, no Manifesto afirma que a Psicanálise e a Revolução Socialista já teriam existido no Brasil, antes da chegada dos portugueses pois se tratava de uma sociedade que já havia elaborado seus traumas, uma sociedade - ou sociedades - onde noções como pecado e perdão não faziam sentido.

“Só me interessa o que não é meu” A busca da diferença e o elogio da apropriação do outro eram consideradas a única lei do antropófago já que não seria possível encontrar nada que nos unisse enquanto nação, a não ser a devoração. Nesse sentido, Oswald faz vibrar diferentes acepções de “Antropofagia”, desde as mais literais às mais elaboradas como metáforas.

A Oswald não interessava, entretanto, o que chamava de “baixa antropofagia”, o canibalismo como forma de assassinato ou para satisfazer a fome. A Antropofagia, é portanto, uma forma daquilo que o antropólogo Victor Turner estudou sob a terminologia dos ritos liminares, ou seja, trata-se de uma ritualização da relação com o outro.

Durantes os anos de 1928 e 29, a Revista de Antropofagia, em duas fases (primeira e segunda dentição) reuniu artistas e colaboradores do movimento que teve, porém, rumos modificados em função da crise econômica de 1929, o crack da bolsa de Nova York e as consequentes perdas nos territórios da aristocracia paulistana, da qual faziam parte a maior parte dos Modernistas, incluindo Oswald.

Casado com a artista Tarsila do Amaral, Oswald irá se envolver com uma jovem protegida pelo casal, o que leva a uma ruptura do poeta com sua vida abastada. A jovem, Patrícia Galvão, torna-se militante do Partido Comunista e Oswald a acompanha, criando uma variação da antropofagia no jornal O homem do povo que, durante curto período dos anos 30, cerra fileiras com a esquerda em luta contra o emergente fascismo. Durante os anos da ditadura de Getulio Vargas, Pagu, como era apelidada Patrícia, é presa e torturada. Oswald e Pagu se afastam e, após a segunda guerra, Oswald, muito antes da emergência das críticas ao stalinismo, abandona a militância comunista e retoma a Antropofagia, agora com o intuito de pensá-la do seu ponto de vista filosófico.

Torna-se principalmente romancista e dramaturgo nos anos 30. Mas suas peças não são encenadas e sua prosa não é mais apreciada por uma nova vertente modernista que irá durante os anos 30 e 40 em diante, transformar a mobilização dos anos 20 em políticas oficiais de cultura, importantes para a criação do Instituto do Patrimônio Histórico e os futuros esforços que culminaram com a construção da nova capital brasileira, Brasília, inaugurada em 1960.

Oswald de Andrade, porém não poderá ver nada disso. Arruinado por dívidas e dissipação da fortuna, além de problemas de saúde, viverá até 1953 acreditando que ninguém mais se lembraria dele, esquecido, portanto. Seus estudos sobre a Antropofagia se transformam numa tese - A crise da filosofia messiânica - e em vários outros ensaios como “A marcha das utopias”. Esses estudos continham vários equívocos filosóficos e antropológicos, algumas crenças questionáveis como a do retorno ao regime matriarcal, mas podem ser lidos como uma absorção poético-estética da situação pós-colonial da época extrativista até a era industrial. Oswald acreditava na possibilidade do “bárbaro tecnizado”, um híbrido de habitante selvagem da floresta e cidadão do mundo tecnológico, num universo futuro no qual já não seria possível sustentar a tradição patriarcal. A ingestão da informação vinda do exterior, para esse “bárbaro tecnizado” seria vital, condição para a produção de um discurso da diferença e afirmação de um modo tropical de existência.

Somente a partir de 1967, graças aos esforços de intelectuais e artistas, notadamente, nesse último caso, a partir da primeira montagem de uma de suas peças, “O Rei da Vela” pelo Teatro Oficina, a figura de Oswald de Andrade voltou a tomar a proa da cultura brasileira, sobretudo pelo interesse despertado nos artistas e compositores da emergente “Tropicália”. Oswald de Andrade era o principal referencial dos artistas experimentais da geração anterior como Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari (poesia concreta), Hélio Oiticica e Lygia Clark (concretismo e neoconcretismo) e passa a interessar aos jovens tropicalistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Capinam, Torquato Neto e outros além de motivar transformações no cinema (Glauber Rocha) no Teatro (Teatro Oficina, José Celso Martinez Correa) e na música. Em meio a happenings e a absorção da sociedade de consumo, a Antropofagia foi a fórmula que permitiu a conexão entre épocas culturais diversas no Brasil, o que viria a ser interrompido pelo AI-5 (Ato Institucional número 5) que radicalizou o autoritarismo do Golpe Militar de 1964 e mergulhou o país em uma sombra de terror que só viria a se dissipar nos anos 80.

Nos debates recentes sobre a emergência da produção artística ligada a novas identidades existenciais (trans, LGBTQI+) além da visibilidade cada vez maior de uma arte negra, indígena e das mulheres, confrontando a reação neofascista emergem novos jovens artistas que discutem o impacto das concepções Modernistas em suas obras, com propensão a considerar sua ultrapassagem que, de fato, após 100 anos de seu marco oficial - a Semana de Arte Moderna - já está efetivamente em curso. Dentre estes, e em acordo com alguns críticos e curadores, observa-se uma tendência, no Brasil, de associar a imagem de Oswald de Andrade à sua origem aristocrática, argumentando contra a Antropofagia como um suposto movimento de supremacia branca e machista. Nada seria uma melhor descrição de um equívoco absoluto pois a Antropofagia foi precisamente a tentativa de reverter os paradigmas ligados à patrilinearidade e aos preconceitos racistas. Procuram, também, arquivar no esquecimento as questões relacionadas ao Barroco, mencionado no início, por ver em alguns de seus protagonistas um discurso que favoreceu a opressão aos indígenas, às mulheres, aos negros, em favor de sua submissão. A verdade é que, nesse caso, e em se tratando do Barroco, seria bom observar que se trata de uma estética cuja essencial norma é a contradição. Do mesmo modo que se podem ver discursos do tipo descrito, é provável o encontro com o oposto, o que fica mais claro nos termos da religiosidade então reinante.

Finalmente, os argumentos movidos contra a Antropofagia tendem a assimilá-la à efeméride do Modernismo como se dele fizesse parte. Descontado o fato de que o Manifesto Antropófago não faz cem anos em 2022 e sim oito anos mais tarde, seria preciso compreendê-lo como dissidência do projeto modernista e não o contrário. 1928, nesse sentido, desenha um portal de dissenso de Oswald de Andrade em relação à trupe que o congregava. Dela se afastará radicalmente em sua virada marxista e sobre ela poderá provar o amargo sabor da derrota ao se ver excluído de uma elite endinheirada em grande parte por sua própria situação de pequeno burguês sem remédio e depois de efetivo excluído tanto da cena artística quanto das possibilidades de sobrevivência nos novos tempos.

Em contraposição aos argumentos mencionados acima, creio ser possível hoje afirmar - e não sou o único a defender essa posição - que a Antropofagia constitui-se em uma das formas pioneiras do discurso anti-colonial no Brasil, essencial para que o país busque uma condição de Decolonialidade.

 

 

Biografia

Lucio Agra, professor, ensaísta, pesquisador, artista. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC SP é professor da UFRB (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia), no Cecult (Centro de Cultura, Linguagens e Tecnologias Aplicadas) e no PEPG de Estudos Contemporâneos das Artes no IA-UFF. Há muitos anos milita artisticamente sobretudo na performance, com ramificações na música, no teatro, na poesia e nas artes visuais.Foi co-curador de vários dos Festivais Perfor (2010-2017) em São Paulo, à frente da BrP (Associação Brasil Performance) além de atuar nessa função em exposições no Brasil e no exterior.  Apresentou performances em Festivais em vários estados brasileiros e em vários países. Tem diversos artigos publicados em revistas e livros (coletâneas) e quatro livros publicados, sendo o quinto e mais recente,  "A síntese imprevista - arte de invenção no Brasil dos anos 60-70" (no prelo, saindo em 2022) https://www.youtube.com/c/LucioAgra-arteaovivo